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Colorismo 2.0 (parte 1)

É como se houvesse uma espécie de linha de cor, onde os mais claros de alguma maneira obtêm benefícios, ainda que sejam negros, em uma sociedade racista

ODS 10 • Publicada em 5 de outubro de 2022 - 02:16 • Atualizada em 5 de outubro de 2022 - 09:29

Lembro da primeira vez que me deparei com o conceito de colorismo. Foi em um texto escrito pela brilhante Aline Djocki, publicado numa das mais importantes iniciativas de mulheres negras que a internet já presenciou: o Blogueiras Negras. Talvez você não saiba, mas foi lá que muitas pessoas que hoje são consideradas fundamentais no debate sobre raça e gênero no Brasil começaram a publicar suas ideias.

Leu essa? Ancestral lutadora contra o racismo

A gente escrevia o que tinha na cabeça, mandava para o BN, o BN publicava, nós mesmas repercutíamos e discutíamos entre nós. Quando a gente ia ver, aquele texto tinha alcançado outro lugar, outro tamanho, outra discussão. Saia do próprio blog e ia para outros sites. E era bom. Nossa preocupação maior era que nossas ideias circulassem e lá iam elas.

Blogueiras Negras foi muito importante para muita gente, inclusive para mim, que não só tive a oportunidade de contribuir muitas vezes para a iniciativa, com textos, como também conheci mulheres incríveis que até hoje inspiram minha escrita, ativismo e produção acadêmica – entre elas, a própria Aline.

É uma escritora e pesquisadora extremamente comprometida e competente; além desse primeiro texto, publicado em 2015, onde eu tive o primeiro contato com o termo colorismo, ela escreveu muitos outros visando aprofundar ainda mais esse debate. Mesmo com toda a competência e comprometimento de Aline e de outras pesquisadoras e escritoras negras que assim como ela se debruçaram com o tema, em 2022 a confusão teórica e política sobre o assunto segue constante. Às vezes por falta de leitura e compreensão, outras porque deixar o conceito ser mobilizado de forma equivocada pode acabar ocultando ainda mais os processos que ele busca elucidar.

De 2015 até agora presenciei muitas discussões, conversas, diálogos e trocas onde apareceu o termo colorismo, especialmente entre mulheres negras. Mas também vi algumas vezes a palavra ser empregada por pessoas brancas para afirmarem uma negritude inexistente, que eu conseguia perceber com os meus olhos que a terra um dia vai deglutir. Gente que tem pai ou mãe negro mas que nunca negro se considerou – a não ser quando, por exemplo, afirmar a negritude antes inexistente facilitaria a ascensão no mercado de trabalho ou a concorrer para vagas destinadas a pessoas negras.

O aumento de oportunidades decorrente das políticas públicas destinadas a negros e negras fez pessoas que sempre se entenderam brancas, e que nunca foram privadas de nenhuma oportunidade devido sua condição racial, passarem a se considerar pardas e, consequentemente, negras, perante a possiblidade de obter algum ganho com essa autoafirmação.

A mobilização intencionalmente errônea fez com que algo que é fato nos Estados Unidos pudesse ser utilizado no contexto brasileiro como verdade. Aqui, nem sempre, filho de preto, negro é. E não ser considerado negro no cotidiano brasileiro, ser lido socialmente como branco no contexto brasileiro, faz diferença nas oportunidades que iremos receber. A gente sabe disso, a sociedade brasileira sabe disso, a branquitude sabe disso. Contudo, em algum momento, parecer não saber e articular certas confusões, assim como quem não quer nada, mais uma vez querendo facilitar ainda mais a vida de quem tem a vida mais fácil.

Mas antes de expressar minha indignação sobre a forma como esse conceito circulou no contexto brasileiro e sobre o quanto ele foi se transformando em algo que pouco ou em nada tem a ver com a sua origem, vale trazer algumas informações que talvez ajudem a compreender melhor o problema do conceito no nosso Brasilzão de meldels. Estou convencida de que no Brasil o colorismo não se aplica, pelo menos não se fizermos uma análise sociológica séria do que significa ser negro em nosso país.

A autoria do conceito de colorismo é atribuída a Alice Walker, escritora negra estadunidense que em 1982 definiu o termo como o tratamento nocivo ou preferencial que a sociedade destina para pessoas de um mesmo grupo racial baseado somente em sua cor de pele. Em artigos que tratam sobre o tema no contexto de lá, é bem comum ser mencionada a forma com que, no contexto pós direitos-civis, o mercado de trabalho corporativo, a mídia e a indústria do entretenimento incluíram e visibilizaram pessoas negras de pele clara das de pele mais escura.

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O colorismo tem dimensão estética e está associado ao que entendemos como padrão de beleza e aceitabilidade. Além disso, é como se houvesse uma espécie de linha de cor, onde os mais claros de alguma maneira obtêm benefícios, ainda que sejam negros, em uma sociedade racista. É um tema complexo, geralmente tratado a partir de questões relacionadas a subjetividade, desejos e expectativas sociais.

Lembro que quando tomei conhecimento do conceito de colorismo e fui atrás de outros textos além dos escritos de Aline, me reconheci em muitas narrativas das mulheres negras de pele escura. Elas relatavam como em suas interações pessoais e profissionais o fato de serem escuras havia se consolidado um entrave. Escreviam sobre dores da adolescência onde eram preteridas em seus afetos na sua própria comunidade enquanto jovens mais claras desfrutavam de olhares desejosos, de namoros, de relacionamentos que adolescentes esperam vivenciar.

Também mencionavam o quanto seus cabelos absolutamente crespos eram vistos de forma pejorativa e alvos constantes de toda sorte de deboches e xingamentos, enquanto os cabelos de cachos mais abertos das mais claras eram o sonho que para ser alcançado demandava produtos químicos que cheiravam mal, faziam o couro cabeludo arder e os olhos lacrimejarem.

Lia esses textos e me reconhecia, lia esses textos e lembrava de situações em que meu cabelo era comparado com o de outras meninas negras e rotulado de ruim ou feio. Cada leitura me fazia recordar das inúmeras vezes em que me foi dito que eu era uma negra feia muito preta e que jamais ninguém iria me querer. Ou seja, aqueles textos apresentavam uma explicação bem articulada para muitos problemas que tinha vivenciado. Por mais que eu soubesse que minha família me amava, parecia que as pessoas claras eram mais amadas. E na minha cabeça, por serem mais brancas. Mais brancas do que eu.

Felizmente, a minha imensa sede de conhecimento e meu comprometimento em saber detalhadamente as coisas para poder falar com propriedade sobre elas me levaram à frente. Precisava entender o que significava na vida da minha irmã, que era mais clara do que eu e que também sofria com o racismo, embora o enfrentasse com estratégias diferentes das minhas. Precisava saber o que significava aquele conceito em um país onde a negritude não é algo em essência e se apresenta a partir de contextos variados.

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